A Era do Direito Conciliatório

O porquê conciliar interesses é um caminho sem volta


Por Daniel Eloi de Paula Rodrigues em 27/11/2019 | Processo Civil | Comentários: 0

A Era do Direito Conciliatório

Defender a tese de que se está em uma “nova era” é falar sobre a ruptura – ou sobre a necessidade de ruptura – com uma ordem até então vigente.

No presente texto, por ordem vigente consideraremos os mecanismos do Estado de Direito para responder a conflitos. Por nova ordem, os métodos alternativos de solução de conflitos – encabeçado pela Mediação – como caminho auxiliar ao sistema processual clássico de litigância.

Contudo, além de jurídica, a nossa análise é política, social e – evidentemente – histórica. Entendemos que essa ruptura é, antes e sobretudo, a sucessão da Modernidade pela Pós-Modernidade.

O Direito da Modernidade foi marcado pela rigidez e pelo viés positivista. Responsável pela criação de um aparato estatal forte, coercitivo e sancionador, que influenciou a política, a economia, a cultura e a sociedade ocidental como um todo. Em contraponto, o século XX do período pós Guerras Mundiais tem se caracterizado por um mundo dividido em camadas sociais, com desigualdades e com um anseio crescente pela efetivação da dignidade humana.

É a Pós-Modernidade. Plural em seus discursos, necessidades e metas, e sob a égide de uma estrutura jurídica e política injusta, arcaica e ineficaz. É inegável a contribuição modernista e iluminista para a humanidade. Todavia, é insuficiente. Algumas “crises” comprovam este diagnóstico.

É o caso da crise do Poder Judiciário.

A massificação das políticas de Estado e dos problemas sociais oneraram os órgãos judicantes. Até então, na prática, o acesso à justiça era o desejo de muitos e o privilégio de poucos. Com essa boa mudança de paradigma, não se consegue absorver a demanda de ações propostas.

Para Eduardo Bittar (2009, p. 306): Sem dúvida nenhuma, o termômetro da erosão maior de um sistema jurídico é o próprio Poder Judiciário. Isso se deve ao fato de se tratar do Poder incumbido de exercer o importante múnus da decidibilidade, concretizando as normas abstratamente previstas pelo ordenamento, convertendo-as em normas individuais, que atendem a demandas reais e históricas nas quais agentes sociais se encontravam envolvidos. Mais que isso, o Poder Judiciário é aquele que mais se vê acossado pela enormidade dos problemas sociais brasileiros, por ser constantemente instigado a decidir conflitos de natureza social, que deveriam ser tratados e implementados politicamente (a priori), e não jurisdicionalmente (a posteriori), diga-se de passagem, lidando com questões dessa natureza dentro de uma cultura liberal, de conflitos individuais, de demandas de interesse privado, sem aparelhamento e/ou preparo devidos, bem como dentro de um sistema engessado por formalismos e procedimentos processuais incapazes de satisfazer a questões de dimensão difusa e/ou coletiva.

Além disso, vivemos a crise da litigância.

Por anos semeou-se um “espírito litigante” no ambiente processual. Por vezes, como mecanismo de pressão entre as partes envolvidas. Situações fúteis e irrisórias da vida se transformam em disputas absurdas, prolongando-se no tempo algo cuja solução não reside naquilo que a sentença possa expressar, mas sim na capacidade dos envolvidos de dialogarem e de encontrarem por si mesmos a harmonia necessária que viabilize a sua convivência.

Segundo Bittar (2009, p. 243), é característico desse período: Forte desenvolvimento de uma cultura de litigiosidade jurídica e exploração do aspecto contencioso do direito que o torna meio de agressão ou violência simbólica, em face de uma cultura da arbitragem ainda pequena e insignificante diante da grande enxurrada de demandas recebidas diariamente pelo Poder Judiciário: a proliferação de um uso do direito como um exercício de agressão (ainda que simbólica), desvia, naturalmente, sua finalidade precípua, além de torná-lo um argumento de autoridade e pressão, ou seja, mais um instrumento de efetiva subjugação daquele que é desconhecedor dos trâmites jurídicos ou daquele contra quem se quer ver inflingido um mal vingativo nas negociações ou nas relações sócio-humanas mais corriqueiras (Não é incomum escutarem-se as seguintes frases: ‘Eu vou te processar e complicar tua vida!’; ‘Cuidado, porque eu te processo e te enrolo com a justiça!’), manifestando-se em diversos níveis de agressão, [...] deixando o ordenamento de representar uma forma de garantia de direitos para tornar-se um argumento a mais favorável ao arbítrio pessoal.

Por mais profunda que seja a reflexão acerca do caso e dos direitos em jogo, a sentença parece não ser capaz de por fim ao conflito e de trazer a paz – de aplacar o ímpeto das partes.

Por fim, o inchaço do ordenamento jurídico gerou uma crise interpretativa.

Enquanto há processos em que a lesão ou o perigo de lesão a determinado bem jurídico está claro, em outros há o receio de que a sentença venha a ser a precisa causadora da ofensa ao Direito. São casos para os quais ordenamento jurídico não pontuou clara e objetivamente qual é a tradução que deseja. Não se trata de mero conflito de normas, mas do Direito consigo mesmo, enquanto produtor de pacificação, justiça e desenvolvimento social.

Entende Valéria Warat (1999, p. 75-76): Quando os juristas falam de conflito, o reduzem à figura do litígio, o que não é a mesma coisa. Quando se decide judicialmente, por meio de um litígio, considera-se normativamente os efeitos (principalmente sobre os interesses em disputa); desse modo o conflito pode ficar hibernando, retornando agravado em qualquer momento futuro.

Os mecanismos clássicos para a solução de litígios não contemplam a questão como um todo, o que resulta em um alto grau de reincidência processual, bem como no congestionamento do Poder Judiciário com as mesmas causas anteriormente apreciadas ou com outras destas derivadas. Com isso, é inapropriado encerrar o ordenamento jurídico e, de forma mais específica, restringir a apreciação do Direito material em conflito ao método do rito processual clássico.

É o que entende Dora Fried Schnitman (1999, p. 17): Nossa cultura privilegiou o paradigma ganhar-perder, que funciona como uma lógica determinista binária, na qual a disjunção e a simplificação limitam as opções possíveis. A discussão e o litígio – como métodos para resolver diferenças – dão origem a disputas nas quais usualmente uma parte termina ganhadora, e outra, perdedora. Essa forma de colocar as diferenças empobrece o espectro de soluções possíveis, dificulta a relação entre as pessoas envolvidas e gera custos econômicos, afetivos e relacionais.

É nesse ambiente conturbado que a busca de formas alternativas para a solução de litígios surge como um horizonte possível e desejável. Habermas tratou dessa ideia de maneira ampla – nos ramos político, social e jurídico – em sua Teoria da Ação Comunicativa.

Explica Lília Sales (2003, p. 171): A Teoria da Ação Comunicativa, de Jürgen Habermas (Theorie des Kommunikativen Handels), procura um conceito comunicativo de razão e um novo entendimento da sociedade, ou seja, sociedade na qual os indivíduos participam ativamente das decisões individuais e coletivas conscientemente, ensejando-lhes a responsabilidade por suas decisões. Essa teoria entende o indivíduo como ente participativo que antes de agir avalia as possíveis consequências, tendo em vista, por exemplo, a normas e sanções apresentadas pelo ordenamento jurídico do país. Não agem, portanto, automaticamente.

Mais do que uma visão de mundo, a ênfase conciliatória é fruto da necessidade Pós-Moderna de que existam mecanismos de diálogo entre os indivíduos e as instituições políticas, bem como locais de debate dos conflitos, além da busca por consenso e por soluções definitivas.

A vantagem dessa abordagem repousa na sua capacidade de leitura do mundo e da apreensão da realidade social diária in locu, de modo que é capaz de perceber e de conceber estruturas mais úteis e funcionais ao ser humano. Consequentemente, atinge o Direito, conferindo-lhe maior aceitabilidade, aplicabilidade e eficácia ao atuar na sociedade.

Para Ellen Gracie Northfleet (1994, p. 325), no casos desses métodos alternativos de solução de conflitos: O clima de informalidade e a confidencialidade das sessões favorecem o esclarecimento de situações que talvez não aflorassem na sala de audiências. O diálogo que se estabelece entre as partes é mais verdadeiro porque envolve a inteireza de suas razões e não apenas aquelas que poderiam ser deduzidas com forma e figura de juízo.

Muito preconceito ainda cerca, por exemplo, a Mediação de conflitos. Quando se houve falar pela primeira vez, parece que se trata de apaziguar – quase como “pôr panos quentes” em algum problema. Não é o caso.

A Mediação está mais próxima da ideia que sustenta, por exemplo, o modelo das Start Up’s. Eu tenho um problema e preciso de uma solução rápida e eficiente. Os envolvidos se juntam e tentam compor um arranjo que seja benéfico para ambos os interesses. A roda tem que girar. Permanecer parado é perda de tempo e prejuízo certo.

Pensar Direito e Justiça fora dos mecanismos clássicos e formais é realmente um desafio. Litigar é um hábito milenar. Entretanto, a perspectiva de pacificação e de desenvolvimento social substancial é incentivo suficiente para essa mudança de cultura. Por isso, na postagem anterior, falamos sobre a bilionária e contrapoducente retenção de recursos - mais de 200 bilhões de reais - por meio de processos judiciais em curso no país. O atraso não é só de tempo, mas também na possibilidade de multiplicar ganhos.

Nas próximas postagens, falaremos um pouco sobre cada um dos métodos alternativos de solução de conflitos e sobre exemplos práticos para a sua aplicação.

 

 

Referências Bibliográficas:

BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. O direito na pós-modernidade (e reflexões frankfurtianas). 2. ed., rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. 541 p.

NORTHFLEET, Ellen Gracie. Novas fórmulas para solução de conflitos. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. O Judiciário e a Constituição. São Paulo: Saraiva, p. 323-326, 1994.

RODRIGUES, Daniel Eloi de Paula. O princípio da proteção da confiança e a era do direito conciliatório. Disponível em:

<http://intertemas.toledoprudente.edu.br/index.php/Direito/article/view/4449>

SALES, Lília Maia de Morais. Justiça e mediação de conflitos. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. 344 p.

SCHNITMAN, Dora Fried. Novos paradigmas em resolução de conflitos. In: SCHNITMAN, Dora Fried; LITTLEJOHN, Stephen (Org.). Novos paradigmas em mediação. Porto Alegre: ArtMed, p. 17-27, 1999.

WARAT, Valéria. Mediação e psicopedagogia: um caminho por construir. In: WARAT, Luis Alberto (Org.). Em nome do acordo – a mediação no direito. 2. ed. Argentina: Almed, p. 122-123, 1999.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Ibijus


Sobre o autor

Daniel Eloi de Paula Rodrigues

Advogado atuante nas áreas cível, trabalhista e administrativa. Conciliador/Mediador certificado no Conselho Nacional de Justiça - CNJ e atuante nas áreas judicial e extrajudicial pelo Tribunal de Justiça de São Paulo - TJ/SP, com ênfase nos CEJUSC's do interior de São Paulo e cinco anos de experiência na área. Especialista em Interesses Difusos e Coletivos pela Toledo Centro Universitário.


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